Lá estávamos nós, sentados no gramado, em frente à casa do Nê... Nós éramos bons amigos, os melhores amigos. Estávamos juntos há mais de dois anos, sempre juntos, fazíamos tudo juntos, saíamos, nos encontrávamos pra conversar, sorrir e sonhar "juntos".
Eram duas da tarde e estávamos de férias do colégio. Nê, Nego, o seu irmão Polaco, e eu, André. A conversa estava muito boa, parecia que não iria acabar, quando de repente, como de um assalto, chegou um garoto de 12 anos que falava em voz mole, como de quem está drogado. "E aí, vamo resolvê aquela pedra? Cê vai aprende a num mi tirá." Era o Mila, um menino que cresceu em uma família de bandidos, que gostava de ser bandido, como qualquer um de nós tem o sonho romântico de ser bandido, mesmo que seja bandido do bem. Ele sacou uma pistola e colocou bem em cima da cabeça do Nego. Ficamos todos tensos, sem saber o que fazer. "Que 'pedra' é essa?" Os momentos passavam como uma eternidade, os segundos eram lentos, lá estávamos em uma roda de amigos... Mas de onde ele saiu? "Agora cê vai morrê! Fia da mãe," ele dizia. Enquanto estávamos todos petrificados, perplexos, o Polaco deu um grito de desespero e pulou na arma. Houve um corpo-a-corpo, e arma estava na mão do Polaco. Um tapa e voou pra mão de uma das irmãs mais velhas do Nê, Cris. Enquanto a pobre menina gritava de desespero sem saber o que fazer com aquilo nas mãos, Mila aproximou-se, agora com a situação sob controle, pois uma menina não conseguiria resisti-lo, e tomou a arma dela, imediatamente. Nego começou a correr em direção à igreja do bairro, correr com tudo o que ele podia correr, era sua vida em risco. Mila atrás, Polaco atrás de Mila. Meu velho avô era o respeitado pastor da igreja e estava lá fazendo limpeza, quando obviamente viu os meninos passando correndo em frente da igreja. Correu atrás dos meninos por quarteirões, pois isso ele fazia bem como qualquer menino. Ele os alcançou quando já estavam em mais uma luta, digladiando pela pistola de novo. Os três rolavam com saliva escorrendo de suas bocas, suor em cada parte de seus jovens corpos, tentando decidir quem continuaria a viver "aquela vida." O meu velho avô se aproximou dos três ali no chão, puxou o Mila e disse com uma voz de autoridade: "Vai pra casa minino! Seu sem vergonha! Dexa o rapais em paz!" O Mila não resistiu à voz de comando do pastor, pois em sua pequena mente, o pastor era como Deus e Deus lhe mandara ir para casa. Lá foi ele, cambaleando pela rua, "chapado," doido, meio sem saber onde era sua própria casa. Estava sobre o efeito da "cola," a droga mais comum da periferia de Londrina, minha cidade adotiva. A droga dos meninos pobres que a cheiram para inibir a fome, como eles mesmos diziam.
Minha mãe morreu quando eu tinha onze anos, em Curitiba, deixando eu e meu irmão Fábio de cinco anos, lá, sem pai, sem parentes, sem mais ninguém, só nós dois.
Logo que notei que tinha algo errado com minha mãe, eu e meu irmão saímos de casa procurando ajuda, na noite das Vilas Oficinas, um bairro da periferia de Curitiba, só de pijama. Caminhamos até um posto que eu tinha visto alguns dias atrás em uma de minhas voltas pelo novo bairro para o qual tinha acabado de me mudar. Quando chegamos lá, havia um policial, e ele, mesmo já sabendo do que estava acontecendo, ficou perplexo ao ver dois meninos daquele jeito, andando as duas da manhã em uma madrugada de geada em Curitiba. Ele ouviu o caso pelo rádio e dois de seus colegas tinham ido atender a ocorrência da quadra 22, casa 10. Um vizinho havia notado o movimento anormal e acionou a polícia, que chegou e constatou a morte. Quando os tais policiais voltaram ao posto policial pelo chamado de seu companheiro que nos encontrara, foi difícil de olhar pra nós. Eu sabia que estava sendo difícil pra ele falar conosco, dois meninos com frio e cara de choro, embora eu tentasse ser o mais forte possível lendo em seus olhos a mensagem inevitável. "Existem momentos em que o Papai do céu escolhe algumas pessoas para morar lá com Ele," dizia depois de nos convidar a encostar no carro com ele. "E a gente precisa ser bem forte pra encarar o que está à nossa frente, sua mãe está com o Papai do céu." Enquanto meu irmão chorava, eu tentava conter o meu choro, choro do medo, choro da emoção, choro de revolta por ter sido deixado neste mundo sem minha mãe, minha única proteção, nossa única proteção, e segurava a mão de meu irmãozinho que chorava alto e ardido. Pensei em milhares de crianças que ficam sem mãe, sem pai, sozinhas e agora tinha chegado a minha vez. Todos têm que passar por isso, todos passarão por isso, essa é a minha vez, eu não tenho outra escolha... Vou vencer! "O que a gente vai fazer com estes meninos?" perguntou um policial que não sabia pra onde nos levar depois da constatação de que minha mãe estava morta. Eu e meu irmão nesse mundo de cão. Com apenas onze anos, eu sabia que seria difícil dali para frente. Era preciso coragem e não ter medo do futuro incerto que estava à nossa frente. Minha esperança eram meus avós que estavam no estado do Sergipe em uma missão evangélica. Eles precisavam vir e nos socorrer.
De repente vieram parentes de todos os lugares, mas ninguém para cuidar de nós, só para chorar em volta do caixão e dizer: "Ela era tão nova pra morrer, tinha apenas trinta e três anos, porque essas coisas acontecem?" Enquanto meu irmão chorava, eu tentava conter as lágrimas, pois precisava ser forte para dar-lhe segurança. Não foi fácil...
Isso aí "mano"
O mundo é dos espertos
Cagüeta morre cedo
Vamo fechá seu palitó
Cara cabuloso
Aqui não, meu
Estas e tantas outras frases, dizer ofensivo e áspero, foi o que escutei. Não me davam escolha, a vida era aquela, má, sem esperança de que algo melhor pudesse acontecer.
"Vai ser sempre assim? Isto é o que é a vida?" Enquanto pensava nisso me virei para trás e sem saber por qual razão... "Hummm... De novo?" Lá estava ele, desta vez era o Marcelinho, que como o Mila tinha um histórico de irmãos bandidos, do berço do crime. Com um estilingue ele apontava uma pedra diretamente pra minha cabeça, queria acertar só pra rir quando o caldo vermelho escorresse.
"De novo, era sempre assim! Eles tiram sangue da gente por deboche, um dia morro... só por deboche, pra eles poderem rir de mim, não vou correr, vou ficar aqui, não adianta correr de qualquer forma." Meus nervos se enrijeceram, meus olhos escorreram lágrimas de revolta, continuei andando como se não tivesse visto. Correr ou reagir seria pior neste caso, era só esperar a pedrada. Os segundos passaram lentamente enquanto imaginava aquela pedra voando em direção à minha nuca ou cabeça, parecia que a consciência da situação fazia com que ela viesse devagar, fazendo com que a dor fosse pior. Sentia o ardor da fúria de onde não existe lei, aonde a polícia nunca chega, onde o que vale é a lei do mais forte... Tinha medo de olhar pra trás, pois se fizesse tal coisa a pedrada seria em meu rosto, no meu olho, ou sei lá. Mas a pedra nunca chegou, demorou e finalmente tive coragem. Quando olhei pra trás a mão do Marcelinho estava ensangüentada, escorria sangue até o cotovelo. Ele acertara com a pedra em sua própria mão. Como? Eu não sei.
Mais uma vez algo inexplicável tinha acontecido ao menino que sentia que era diferente e que aquilo ali não era o seu lugar. Aquele lugar onde se matava por riso, porque simplesmente não gostavam. Como fizeram com seu João, um "bóia-fria" que esfaquearam sorrindo, que até as namoradinhas dos bandidos puderam fazer sua parte nessa cruel "brincadeira."
Não queria ter filho, mesmo com a menina que gostava de mim, que parecia ser a mais bonita da minha classe no colégio. Filhos pra eu fazer deles isso aqui, pra serem bandidos? Pais que não assumem seus filhos? Eu não tinha esperança por eles.
Nas fogueiras, nos crepúsculos de invernos, sonhávamos com algo diferente, sonhávamos com uma vida normal, em sermos felizes, sem sabermos o que é normalidade ou felicidade. Éramos quatro amigos sonhadores, sonhadores de sonhos distantes, inalcançáveis.
É para isto que eu existo?
É para isto que eu fui criado?
A vida que vivo é a única coisa que existe?
Agora no fim do 2008 tenho trinta e um anos, uma maravilhosa esposa e três crianças que nem sei dizer qual é a minha predileta. Tenho vida e esperança para transmitir para eles, e não há nada melhor do que isto. Meu irmão Fábio que agora tem vinte e seis anos também está aqui comigo. Sou feliz, encontrei o propósito pelo qual todo ser humano foi criado. Como eu, muitos meninos e meninas sofreram, sofrem e sofrerão neste mundo de cão. Mas não fomos criados pra isto. Temos a chance de mudar, vencer, fazermos diferente. A mudança começa agora, é só seguir seu coração e negar o resto.
Ya'al
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