Rafael


Tudo começou quando ele ainda era um menino e foi para sua mãe perguntando sobre uma mancha estranha em seu braço. Era uma mancha bem pequena e quando ele a tocava, não sentia nada. Era como se não a estivesse tocando. Sua mãe estava sempre na correria do dia a dia e não tinha tempo para dar atenção ao problema do seu filho. Sempre ocupada, ela dizia que era algo que ia passar e que ele não se preocupasse. O menino se consolou com aquelas palavras e decidiu esquecer o assunto.

Seu pai lhe contava muitas vezes, especialmente no dia do seu aniversário, a razão pela qual eles o deram o nome de Rafael. Ele dizia que a nação de Israel estava doente e precisava de cura. Não havia profetas para falar ao povo e por isso eles estavam perecendo. Eles não estavam mais ouvindo a voz de seu Deus. Ele também contou para seu filho que um dia um curador viria para levantar a nação inteira novamente e curar suas doenças. Rafael viu o anseio no rosto de seu pai e o desejo profundo do seu coração enquanto ele falava. Ele mesmo não entendia muito sobre aquelas coisas, mas ele sabia que seu pai as levava muito a sério.

Com o passar do tempo, Rafael notou novas manchas aparecendo em diferentes lugares do seu corpo. Aquela primeira mancha estava aumentando e perdendo a cor.

Um dia ele estava jogando "esconde-esconde" com seus amigos e resolveu esconder-se no meio de alguns arbustos de espinho. Ele teve uma oportunidade de sair do esconderijo e lançou-se desesperadamente para o "salvo" antes que fosse pego pelo "caçador." No fim do jogo, enquanto todos riam e falavam sobre a brincadeira que fizeram, um dos meninos parou abruptamente e olhou amedrontado para Rafael, apontando para o seu braço.

Rafael ficou surpreso ao ver um espinho enorme fincado profundamente em sua pele. Qualquer outra criança teria corrido aos gritos para sua mãe tirá-lo, mas Rafael permaneceu parado, perplexo, perguntando a si mesmo o que poderia estar acontecendo, pois ele não estava sentido nada. As outras crianças acolherem ao seu redor, perguntando se estava doendo muito ou não. Ele se virou e correu para casa. Ele estava com medo… do que, ele não sabia, mas havia algo temível acontecendo em seu corpo.

Alguns dias depois, durante um daqueles raros momentos quando Rafael e seu pai tinham tempo para estarem juntos, eles foram caminhar até um lugar que gostavam muito, um pouco fora da cidade. Enquanto caminhavam, seu pai contava com paixão e de maneira muito viva e dramática a sua história favorita: Eliseu e os ursos. Rafael gostava muito de ouvir tudo sobre os profetas do Deus de Israel e escutava com toda atenção, fascinado.

Seu pai chegou ao fim da história trágica olhando fixamente para Rafael. Depois de um longo momento se calou, observando o rosto do seu filho, e, pensativo, estendeu a mão para tocar em sua sobrancelha, mas hesitou e não a tocou. O menino sentiu-se desconfortável diante do olhar penetrante de seu pai. Por um breve momento ele percebeu uma preocupação incomum em seu rosto.

"O que foi, aba? O que há de errado?" - perguntou Rafael. Seu pai tentou disfarçar e forçou um sorriso. Virou-se para o caminho, afastando-se de Rafael, e disse "Não, filho, só estava pensando sobre muitas coisas, sabe? Vamos continuar nossa caminhada..." e voltaram a caminhar.

Os dois chegaram em uma floresta onde mais para dentro havia uma árvore da qual gostavam muito. Seu pai gostava de se sentar embaixo dela para descansar e pensar. Entraram então um pouco mais para dentro da floresta, em silêncio, até que chegaram em um pequeno lago de água fresca. Rafael gostava de ir lá com seu pai, pois geralmente não havia ninguém por perto. Tudo que se movia lá eram os pássaros, pequenas criaturas que corriam para cá e para lá, de esconderijo a esconderijo, e o suave murmúrio do córrego que enchia o lago.

Finalmente encontraram sua árvore favorita, e com um forte suspiro o pai de Rafael sentou-se debaixo dela, apoiando suas costas em seu tronco. Rafael sabia que logo seu pai ficaria sonolento e cairia no sono. Ele sorria enquanto olhava para seu pai e admirava o cuidado e amor que seu aba tinha por ele.

Com sede, Rafael foi ao pequeno lago de águas claras e tranqüilas e ajoelhou-se para beber. Ao inclinar-se viu seu reflexo nas águas. Alarmado, parou e ficou bem quieto, olhando para si mesmo, querendo não acreditar no que estava vendo. Levantou a mão direita à sua testa para ver se o que estava vendo era real. Sim, era! Boa parte de sua sobrancelha direita tinha caído! Olhando fixamente para seu reflexo, ele lembrou-se do olhar penetrante de seu aba instantes atrás. Será que era por isso que ele parecia tão preocupado? Sentiu um frio na barriga novamente e já não queria mais estar na floresta. Ele queria ir para casa. Ele fez barulhos de propósito para que seu pai acordasse e percebesse que estava ficando tarde. Rafael se esforçou para pensar em coisas boas enquanto caminhavam de volta para a casa.

Naquela mesma noite, sentados à mesa, todos estavam calados como nunca antes. Os olhos de sua mãe estavam diferentes, avermelhados, e os de seu pai, tristes. A refeição acabou mais cedo que o normal e todos foram para seus quartos. Foi difícil para ele dormir naquela noite, tentando entender o porquê de seus pais estarem tão diferentes ultimamente. Ele tentava não pensar sobre o assunto, porque isso fazia com que ele tivesse pesadelos de estar sendo abandonado em algum lugar, ou de se encontrar perdido em uma terra estranha.

Na manhã seguinte, depois de um desjejum particularmente quieto, seu pai disse para ele que eles iriam ao templo para falar com o sacerdote. Ele queria ficar animado, mas a aparência e o semblante de seu pai colocou um certo pressentimento em seu coração. Sua mãe parecia muito triste e evitava olhar para ele. Com certeza havia algo errado.

A caminhada para o templo foi silenciosa. Seu pai não apontou para todas as coisas interessantes que ele normalmente notava quando eles iam para o centro da cidade. Rafael estava se sentindo muito sozinho, mesmo estando ao lado de seu aba, que desta vez nem colocou as mãos em seus ombros, como costumava fazer.

O templo grandioso estava cheio de pessoas acolhidas em grupos, conversando em vários lugares. Tudo parecia ter um ar de muita importância. Rafael olhava com espanto os Fariseus, cujos mantos faziam-nos facilmente reconhecíveis no meio de muita retórica e leitura de pergaminhos.

Seu pai conseguiu a atenção de um dos sacerdotes e sinalizou seu interesse em falar com ele. O sacerdote veio para onde eles estavam, e puxando ao lado o homem, fora do alcance da audição dos outros, falaram em particular. Rafael permaneceu junto a sua mãe, observando tudo que acontecia em sua volta.

Seu aba e o sacerdote logo voltaram. O sacerdote olhou para o Rafael e sorriu. Posicionando-se em frente ao rapaz, ele fez algumas perguntas simples, enquanto fixava-o atentamente com os olhos. Rafael começou a se sentir desconfortável e nervoso, pois nunca tinha conversado com um sacerdote antes. O homem pediu que Rafael puxasse as mangas e mostrasse seu braço. Obedientemente, o rapaz fez o que o sacerdote pediu. O sacerdote examinou cuidadosamente e de bem perto cada mancha no braço do Rafael, e, findado o exame, pediu que ele cobrisse novamente o braço com a manga.

O sacerdote afastou-se um pouco com o pai de Rafael para conversarem em particular. Os dois pareciam muito sérios. Rafael notou que um grande desânimo caiu sobre seu pai durante a conversa. O sacerdote falava e abanava a cabeça de lado a lado negativamente, como se estivesse concluindo o assunto. "O que está acontecendo?" indagava o menino, com sentimentos cada vez mais temerosos. Eram tão fortes seus sentimentos que ele começou a sentir ânsias de vômito.

Ele viu sua mãe fixar um olhar ansioso no sacerdote e em seu marido. Ela não conseguia segurar as lágrimas silenciosas, pois o marido abanava a cabeça em resignação, mirando com incredulidade o nada enquanto ouvia as palavras que o sacerdote falava. De vez em quando, o sacerdote lançava o olhar em direção ao menino, como se estivesse falando sobre ele.

O coração de Rafael batia muito forte quando viu seu pai e o sacerdote vindo em direção a ele e sua mãe. Ele já estava certo que havia algo muito errado, e que ele estava envolvido!

Seu pai olhou para sua mãe e com um olhar triste acenou com a cabeça, afirmando o que ela já temia. Ela caiu aos prantos, encostando o rosto em seu ombro.

O sacerdote, por sua vez, voltou-se para o Rafael e lhe disse com uma voz firme e baixa, "Você está com lepra. Seu corpo está muito doente e é por isso que você tem essas manchas.." Rafael sentiu um zunido nos ouvidos, uma espécie de tontura repentina ao ouvir as palavras fatais do sacerdote. Sentia-se numa corte perante um juiz ao receber a pena de morte. Parecia que algo tapava sua boca, algo engasgava a garganta. Em desespero, voltou-se para os pais, mas os dois, abraçados, choravam amargamente.

Ele nem mesmo sabia muito sobre lepra ou quais os requerimentos da lei quanto à doença, mas o sacerdote explicou para ele e os pais minuciosamente o que teria que acontecer. Quanto mais o Rafael ouvia, mas ele perdia a esperança por si mesmo. Sentia-se perdido, abandonado e sem cura. Começou a chorar.

O sacerdote, porém, começou a falar sobre uma esperança, mas uma esperança bem remota, para não dizer quase impossível. Todos prestaram bem atenção enquanto ele falava.

"Yahweh pode te curar, meu filho, mas só se Ele quiser." Uma minúscula chama de esperança acendeu no coração do Rafael.

Saíram do templo juntos, a mãe, em prantos, agarrado ao braço do marido. Ela chorava tanto que mal conseguia caminhar, e em meio a soluços perguntava de novo e de novo ao marido como tal coisa poderia ter acontecido... e o que fariam. Rafael andava atrás, entorpecido com sua triste realidade. Ele caminhava devagar, parecendo ser arrastado pelos pais. Por dentro se sentia totalmente desamparado, com medo, e sem rumo, tanto que, quando chegaram à porta da casa, nem notou.

Seus pais entraram na casa, mas ele instintivamente parou antes de entrar, lembrando-se do que o sacerdote tinha dito: o puro e o impuro não podem conviver na mesma casa. O pai de Rafael virou-se para dizer algo para ele quando notou que seu filho ainda não tinha entrado na casa. Parou e olhou para ele, meio confuso. Quando sua mãe estendeu a mão, como se quisesse trazê-lo para dentro de casa, foi que toda a plena e dura realidade da situação caiu sobre todos eles. Rafael deu um passo para trás enquanto o seu pai segurou sua esposa, impedindo-a de ir na direção de Rafael. Ela voltou a chorar muito forte novamente, chamando pelo seu filho com soluços incontroláveis.

Seu pai, com o coração partido e lágrimas escorrendo pelo rosto, falou emocionado:

"Meu filho, eu amo você! Você é meu grande tesouro! Não sei, não sei o que fazer! Não posso desobedecer à lei de Deus. Tenho que obedecer... talvez... talvez Ele terá misericórdia de você... de nós..." Sua voz perdeu força.

O rosto triste de seu pai e sua mãe com a mão ainda estendida em sua direção - a cena se talhava nas tábuas da memória do Rafael a cada passo que ele dava para trás. Horrorizado, como fugindo do próprio medo, num pesadelo, ele virou-se e correu pela rua numa direção que nunca tomara antes.

Entre duas casas, encontrou uma viela estreita pela qual entrou, parou e, apoiou-se na parede da casa, com seus pulmões ardendo devido ao esforço que acabara de fazer. Não sabia quanto tempo tinha corrido, nem a distância que tinha percorrido. Estava cansado, quase sem fôlego. Sabia apenas que tinha que obedecer ou seria apedrejado, morto em praça pública. Começou a desatar os cabelos que estavam amarrados. Sentia-se estranho com os cabelos soltos, enquanto pensava. Deslizou contra a parede até o chão enquanto uma solidão terrível e fria caía sobre ele. Era só um jovem e não sabia para onde ir nem o que fazer. Pôs a cabeça entres as pernas e chorou.

Muitas vezes ele chorou. Mil vezes ele lamentou amargamente seu fado. Lágrimas desciam por sua face toda vez que se lembrava da dor de ter que se separar dos seus pais, que ele não voltou mais a ver. Era uma dor que nunca o deixava, uma dor muito maior do que a fome, que desde então virou sua companheira diária.

Logo Rafael viu que algumas pessoas eram bondosas e deixavam um pouco de comida para ele, afastando-se rapidamente antes que ele se aproximasse. Outros escarneciam e ameaçavam apedrejá-lo se ele chegasse perto. Ele sempre temia por sua vida, pois havia muitas pessoas hostis, que maltratavam os leprosos.

Certo dia ninguém havia mostrado nenhuma bondade e Rafael estava faminto. Ele andava pela rua com a mão tapando sua boca gritando, "impuro, impuro!". O que restava dos seus cabelos estava soltos, e ele não tinha mais sobrancelhas.

"Não me lembro de ter visto você por aqui antes!", falou alguém por trás de Rafael. Ele virou-se rapidamente para ver quem era. Primeiramente sentiu medo ao ver um homem enrolado com trapos sujos em várias partes do corpo. Seu rosto estava marcado com perebas das quais corria um líquido amarelado.

"Não tenha medo de mim, meu rapaz," disse o homem, sentindo o medo de Rafael, "pois logo virá o dia em que você ficará até mesmo pior do que eu!". Rafael olhou para o chão, envergonhado de ter sentido medo do homem.

"Onde você mora?", perguntou o homem.

"Em qualquer lugar que encontro abrigo," respondeu Rafael.

"Você nunca foi até o nosso acampamento fora da cidade?"

"Não, não sabia que existia um acampamento," respondeu. O homem apontou para uma direção com o que lhe restava do braço, todo enrolado com um pano meio frouxo e sujo, "Venha comigo. Talvez encontremos comida lá no acampamento."

Enquanto caminhavam juntos, pouco foi necessário o grito "impuro", pois as pessoas que os viam com os cabelos soltos, seus trapos e esparadrapos por volta de seus corpos, logo os reconheciam como leprosos. Todos atravessavam para o outro lado da estrada ao se depararem com os dois. Poucos minutos depois, chegaram ao acampamento fora da cidade.

Rafael, a princípio, sentiu forte repulsa pelo odor do acampamento. O ar era "carregado" e ele sentiu náusea. Ele avistou pessoas caladas, sentadas, ou perambulando sem rumo pelo acampamento, todas elas enfaixadas de várias maneiras com esparadrapos, dependendo do grau em que se encontrava a doença.

Havia casinhas provisórias de pedra, barro, galhos e velhos couros de animais. Alguns construíram barraquinhas enquanto os mais empreendedores construíram cabanas de estrutura precária. O homem que trouxe Rafael para o acampamento tinha construído quatro paredes e um teto de barro misturado com outros materiais que ela havia encontrado no lixo. Ele convidou o Rafael para entrar. Sentaram-se no chão batido, pois não havia móveis nenhum, nem mesmo piso. O fedor era quase insuportável. Por alguns minutos Rafael se sentiu tonto.

"Este lugar será sua nova casa, acostume-se com ele," afirmou o homem ao notar o desconforto do rapaz. Olhando de maneira pensativa para o chão, ele resmungou, "Acho que não vou viver por muito mais tempo. Você pode assumir esta minha casa depois que eu for, se você tiver força o bastante."

Comeram em silêncio uma comida velha que o homem tinha guardado num caixote de madeira. Rafael não se importou com o mofo. Já tinha se acostumado com ele.

Naquela noite foi muito difícil para Rafael dormir, pois os gemidos incessantes daqueles que se aproximavam da morte o assombravam. Outros murmuravam a noite toda, falando sozinhos, quase enlouquecidos desde que descobriram que agora eram leprosos e que a realidade da morte certamente viria sobre eles. Aterrorizados, eles viviam dia a dia a ver seus corpos lentamente apodrecerem.

Rafael percebeu que a bondade do seu novo amigo era coisa rara entre os leprosos. Eles eram muito miseráveis, querendo sobreviver o máximo possível, e isso os levou a levar uma vida cruel, egoísta e desumana, explorando um ao outro sempre que possível. De vez em quando se agrupavam, mas não porque eram amigos, mas apenas por causa da proteção que a união trazia. Discutiam e brigavam uns com os outros, toda vez que encontravam comida. Tentavam tomar a comida do Rafael, mas o seu amigo agarrava pedras com sua única mão boa e os repelia com chutes e gritos com linguagem ofensiva e imunda. Entre todos aqueles leprosos, este amigo destacava-se como um dos mais valentões do grupo, e por isso ele era respeitado.

Passavam-se os dias e os meses... para Rafael parecia rápido demais. Ele sabia que cada dia significava um passo mais próximo da morte, e ele não queria morrer. Seu amigo o ensinou como sobreviver, onde e como conseguir comida e panos para tapar seus ferimentos. Ele o ensinou a fazer um exame diário em si mesmo para descobrir se algum novo ferimento havia surgido. Sempre havia a possibilidade de queimaduras ou ferimentos as quais ele não conseguiria sentir ao acontecer, pois os nervos que transmitiam essa sensação estavam morrendo ou já estavam mortos. Era sempre essencial que estes ferimentos fossem imediatamente enrolados em panos antes de se infeccionarem, evitando assim que a morte viesse mais cedo.

Certa noite, enquanto Rafael enrolava um pano sujo e fedido em seu pé, deu-se conta de quanto progredia a doença. Era uma noite fria e uma fogueira tremeluzia no escuro. Ele conseguia ver as silhuetas noturnas dos outros leprosos no acampamento, que passavam ou sentavam ao redor da fogueira próxima a ele, todos enfaixados com seus curativos provisórios.

Enquanto ele tentava fixar a bandagem no seu pé, ele notou a dificuldade que teve em movimentar os dedos da mão. A dificuldade aumentava com o passar dos dias. Movendo a língua dentro da boca, notou que a camada mucosa da boca engrossava. Seu amigo lhe tinha contado tudo, todos os sintomas que se seguiriam, tudo que ele deveria encarar com o progresso da doença. Tinha sido quase insuportável escutar tudo aquilo, mas seu amigo insistiu que ele escutasse para que ele pudesse saber o que fazer e quando fazer, em cada situação. Frequentemente ele dizia para Rafael que ele não estaria sempre presente para instruí-lo em todas as coisas, portanto ele deveria prestar muita atenção agora. De alguma forma, a intensidade daquele homem fazia Rafael lembrar-se de seu pai.

Ele não recebera notícias de seu pai ou de sua mãe desde o dia em que os deixou. Ele questionava se os dois não tinham morrido devido ao sofrimento da separação. Lágrimas corriam pelo rosto parcialmente enfaixado enquanto se deitava para dormir. Naquela noite sonhou com os tempos em que ainda vivia com seus pais.

Conforme o esperado, o amigo de Rafael morreu. A doença havia descido para os seus pulmões e ele mal conseguia respirar. Sangue frequentemente escorria pela sua boca. Certa manhã, o homem não conseguia se levantar. Falava com o Rafael em sussurro estridente, chamando Rafael ao lado. Rafael, agachado ao seu lado, sabendo que seu amigo estava com lepra em estágio terminal, sentiu novamente medo, o mesmo sentimento que ele havia sentido no início da doença.

"Não te contei isso," cochichou o amigo, fazendo um esforço muito grande para falar, "porque realmente não acredito que seja possível... já acreditei, mas agora acho que nem Deus consegue curar a lepra, especialmente a minha!"

Movendo o rosto lentamente, olhou profundamente nos olhos de Rafael.

"Mas você... você é diferente. Você vive falando sobre como Deus pode curar se Ele quiser... Eu perdi esperança nesta fantasia faz anos... mas eu ouvi... que há um Curador... um homem na Galiléia... que purifica os leprosos..." Ele pausou para recuperar o fôlego. "Você ainda tem tempo... se é que isso é verdade. Mas eu não. Meus dias não estão mais contados... agora é uma questão de horas."

Estas últimas palavras ele disse num sussurro semi-audível, voltando seu rosto para a parede, esforçando-se com muita dificuldade para respirar. Gemia a cada fôlego. Rafael sabia que seu amigo morreria antes do final do dia.

Passando para o canto onde os dois guardavam um suprimento de trapos, ele ajuntou várias tiras e as estocou numa sacola velha. Ele não sentia nem um desejo de ficar lá e ver seu amigo morrer. Ele sabia que ele teria que brigar violentamente para não deixar os outros expulsá-lo da cabana. Com certeza, logo que percebessem a morte do amigo, eles estariam lá para tentar tomar posse daquele local. Certamente arrastariam o cadáver do amigo dele para o montão de esterco para ser queimado e voltariam para lutar um com o outro para ver quem dominaria e ocuparia o espaço. Sempre era assim quando um deles morria.

Rafael detestava a amargura e dureza de coração que o rodeava. Ele via até em si mesmo que quando a questão era sua própria sobrevivência, ele podia se tornar cruel e egoísta como todos os outros. Ele sempre se sentia revoltado depois, consigo mesmo, e tentava fazer algo em restituição. Porém, parecia que quanto mais a lepra consumia seu corpo, mais aterrorizado ele se tornava e não conseguia mais controlar os seus medos. Ele se sentia um animal selvagem, cuja sobrevivência consumia seus pensamentos e emoções.

Ao sair do acampamento naquela manhã, ele ouviu alguns leprosos já disputando a cabana onde havia morrido seu amigo. Dando as costas ao acampamento, atirou-se numa direção desconhecida.

Dentro dele um fogo o flamejava. Não era mais a queimação e coceira agonizante de nervos sendo destruídos por uma implacável enfermidade... não... desta vez era o fogo de esperança! Ele tinha que descobrir se era verdade ou não. Seu pai contou para ele que um Curador algum dia surgiria para curar os pecados de Israel. Seria possível este "Curador" vir durante seus anos de vida? Ele tinha que saber com certeza. Ele iria para Galiléia e perguntaria em todo lugar sobre este Curador.

Os dias que se seguiram foram dias quentes e secos. Rafael jamais tinha passado tanto tempo sem comer, mas o treinamento recebido de seu amigo o ajudou a sobreviver... e além disso, ele estava sendo impulsionado pelo desejo de encontrar este Curador. Em certas horas, vinha o pensamento de que talvez ele tivesse enlouquecido, mas ele sabia que jamais descansaria até que soubesse claramente que tudo que ouviu era falso, ou que era a verdade.

De vila em vila ele se posicionava à distância e perguntava a todos que viessem em sua direção se por acaso ouviram falar de algum Curador. Algumas pessoas riram e escarneceram dele, dizendo que se eles tivessem lepra, eles estariam procurando um Curador também. Outros agarravam pedras e as lançavam nele por ter a audácia de abordá-los de tal maneira. Porém, um deles parou e disse que ele, sim, tinha ouvido algo sobre um homem que curou um mendigo cego. "Dizem que ele mora em algum lugar na região da Galiléia," adicionou o viajante, "Mas você não pode acreditar muito nestas histórias de cura, sabe?"

O coração de Rafael dava saltos dentro dele com cada notícia que o levava em direção ao Curador - e se existisse mesmo tal homem, ele teria que vir de Deus, é claro. Todos sabem que somente Deus pode curar. Rafael tentou acalmar seu coração que parecia saltitar de ansiedade dentro dele, enquanto pensava nas possibilidades.

Os dias se arrastaram sem fim. A estrada empoeirada para a Galiléia se esticava com os dias em meio ao forte calor. Ele sentia sede, passava fome, e tentava não perder a esperança. Ele começou a perceber algo diferente no ar, um cheiro desconhecido, mas ele deduziu que se aproximava de água, um grande lago, talvez. Logo adiante ele avistou uma vila.

Nas proximidades da vila, Rafael avistou um poço e decidiu descansar ali, já que não havia ninguém por perto devido ao forte calor do dia. Justo no momento em que ele estava prestes a sentar-se na sombra de algumas árvores, avançou apressadamente sobre ele um grupo de jovens armados com pedras.

"Vá embora, leproso, cão imundo!" gritavam, lançando suas pedras com toda a força.

"Cachorro sujo, nojento! Saia daqui!" Cuspiam em sua direção e agarravam mais pedras para lançar nele.

"Você fede mais que um porco!"

Rafael levantou-se rapidamente e estava tentando escapar quando uma pedra grande atingiu seu tornozelo. Ele não sentiu muita dor, mas ele sabia que seria um ferimento grave. Tentou correr, mas caiu quando o pé do tornozelo ferido cedeu. Tentou rastejar para se afastar, mas os jovens estavam próximos demais. Um deles lançou uma pedra que atingiu a nuca de Rafael. Ele caiu prostrado com o rosto na poeira e perdeu os sentidos.

Os jovens, ao ver o leproso imóvel, prostrado na poeira, amedrontaram-se. Nunca antes apedrejaram uma pessoa, e, percebendo a gravidade da situação, largaram suas pedras e fugiram para casa.

Rafael passou o dia no sol. Ninguém viu seu corpo lá esticado, pois na sua tentativa de escapar dos jovens ele havia conseguido se afastar o bastante para cair entre umas rochas distantes do caminho usual. Assim, ele não ficou visível àqueles que iam puxar água do poço. Já estava escurecendo quando ele acordou.

Ele sentou-se lentamente, segurando a nuca onde haviam lhe acertado uma pedrada. Estava dolorido e sensível. Ele lembrou-se do que tinha acontecido e com as mãos examinou o pé para ver se estava fraturado. Não estava, mas estava gravemente ferido. Ele não sentia nenhuma dor, mas sentia tudo molhado de sangue. As tiras de pano que trouxe com ele numa sacola já tinham se acabado. Decidiu então desatar a bandagem de outro ferimento que não estava tão mal, para cuidar melhor de seu tornozelo. Cuidadosamente ele enfaixou seu pé e tornozelo com as tiras sujas, fixando-as bem para que não se afrouxassem. Agora os dois pés estavam enfaixados e seria muito difícil caminhar longas distâncias.

Rafael ficou de pé e mancou em direção contrária à vila. Começou então a ouvir as ondas do lago enorme que surgia em sua frente. O som consolava-o. Não havia lua, mas as estrelas reluziam agudamente - incontáveis pontos minúsculos de luz acima das águas negras. Era lindo.

Ele jamais se sentiu tão só na sua vida inteira. A dor que rompeu seu coração no dia em que fugiu da casa de seus pais agora o atacava com força violenta e quase insuportável. Ele se inclinou para frente, agarrando seus joelhos enquanto as lágrimas jorravam dos seus olhos e escorriam pela face. Ele estava só, sem esperança, aterrorizado. Levantou sua cabeça para as estrelas, abriu a boca e gritou ao ponto de seu corpo tremer.

"Elohi-i-i-im!!! Elohi-i-i-i-im!!! Por favor, Elohim... quero viver! Por favor, perdoe minha maldade... Quero vive-e-e-er!"

Parecia que só o leve bater das ondas, lavando suavemente as praias, respondiam seu grito de desespero. Só ouvia-se o dueto do suave ritmo das ondas e seus soluços. Rafael, rastejando-se, enfiou-se entre dois barcos na praia e dormiu estirado na areia.

Acordou assustado na manhã seguinte! Ouviu o barulho de muitas pessoas conversando. Apoiando-se em seu cotovelo, Rafael espiou cautelosamente dentre os barcos, e avistou uma multidão de pessoas passando. Estavam todas dando sua atenção a um homem que parecia estar ensinando-as algo. Estavam já se afastando e Rafael não conseguia ouvir o que se dizia, mas algo na maneira que o homem falava com os outros tocou em seu coração. Naquele momento alguém passou por perto e disse algo sobre um aleijado que havia sido curado.

Rafael foi possesso de um impulso de seguir aquelas pessoas. Talvez seja este o Curador! Rafael sabia que ele não conseguiria acompanhar a multidão por causa de seus pés feridos e enfaixados, mas ele se determinou em segui-los de qualquer jeito. Talvez parassem em algum lugar para passar a noite - pensou ele - e lá ele conseguiria mais informações.

Os dias que se seguiram foram de muito desespero e grande determinação para Rafael. Mancando de uma vila a outra, e sempre chegando depois que o mestre já tinha partido. Muitas vezes ele arriscou sua vida escondendo-se em cantos e atrás de muros para escutar as conversas sobre o Galileu e seus discípulos. Alguns estavam dizendo que este homem falava coisas maravilhosas sobre Elohim e curava os cegos, os enfermos e os aleijados. Alguns até mesmo diziam que ele era o Messias. Outros diziam que ele era um impostor... possuído por um demônio. Para Rafael, porém, não havia mais dúvida... era este aquele que ele procurava.

Logo, porém, Rafael descobriu que sua força se esgotara, pois mal tinha comido desde que começou a seguir o mestre. Não teve tempo para pensar em comida. Tremendo de fraqueza, cruzou uma larga colina e entrou debaixo das sombras de algumas grandes rochas. O sol abrasava e seu corpo e trapos lançavam um odor fétido ao ar. De alguma maneira ele teria que alcançar a vila próxima e encontrar algo para comer.

Não se passou muito tempo e o som de muitas vozes o alertou. Uma multidão saia da vila em direção à colina por trás de Rafael. Ele permaneceu entre as rochas, observando tudo atentamente de seu esconderijo. Uma enorme multidão, composta de gente de todos os lugares, estava subindo o morro. Seguiam alguém. Era ele! O homem que ele tinha visto lá na beira do lago! O Mestre! O Curador! Sob as ordens dele, todos se sentaram nas inclinações da colina e ele começou a falar em voz alta.

Rafael estava escondido em um bom lugar de onde ouvia tudo que o homem dizia. Seu coração batia forte... o sangue lhe esquentava as orelhas enquanto ouvia palavras maravilhosas. Ele sabia o que tinha que fazer.

Quase antes que ele percebesse, o homem terminou, e a multidão começou a descer a colina. O povo rodeava o esconderijo de Rafael, aproximando-se cada vez mais. Eles estavam escutando tão atentamente que não viram a figura solitária ficar de pé entre as rochas.

Rafael ficou de pé, tremendo de fraqueza e com o coração disparado. Ele começou a descer dentre as rochas, mantendo seu olhar fixo naquele que andava no centro da multidão. Ele já estava na estrada, no mesmo nível da multidão, mas ainda um pouco afastado. Ele sabia muito bem que seria apedrejado por se aproximar de uma multidão assim, mas não havia para ele outra esperança.

O desespero tomou conta de seu ser enquanto cambaleava em direção ao seu alvo, às guinadas, quase tropeçando. Ele mal conseguia andar nos seus pés feridos e enrolados com trapos. Ele não conseguia conter as palavras que jorravam de sua boca.

"Quero ser puro, quero ser puro!" ele repetia, chegando mais e mais perto da multidão.

Aqueles nas beiras da multidão ouviram a voz que surgia de trás deles. Voltando-se e vendo o leproso, recuavam aterrorizados. Outros se deram conta da comoção e também se retraíram. Alguns ofegaram, cobriram suas bocas e taparam suas narinas quando o odor de Rafael os alcançou.

Rafael continuou seu andar manquejante, arrastando o pé ferido. A multidão se abriu até o centro, onde o homem que ele buscava se encontrava, olhando calmamente na direção de Rafael. Lentamente e com determinação, Rafael se aproximou até que chegou perto o bastante para cair aos pés do homem.

Em desespero total clamou, "Se tu queres, tu podes me fazer puro!"

Ali ficou Rafael enquanto o silêncio enchia o ar. A multidão certamente o apedrejaria pelo ultraje cometido. Ele, prostrado, esperava a primeira pedra esmagar sua cabeça. Ele não sentia nem um medo de morrer naquele momento, pois até seria melhor do que o horror de literalmente apodrecer aos poucos. Ouviu-se o roçar de mantos e roupas. O homem se moveu. O leproso manteve sua cabeça baixa, encolhido.

Então... de primeiro lhe deu arrepios... mas ele relaxou quando percebeu com espanto que alguém estava tocando-o! Sim... tocando nele! Havia mãos desnudas, suavemente, firmemente, calorosamente colocadas uma em cada lado de seu rosto.

Por muito tempo ele tinha desejado o toque de um par de mãos humanas... suaves... calorosas... amorosas. Levantou a cabeça, incrédulo, para ver se ele estava realmente sendo tocado por um outro ser humano. Seus olhos encontraram os olhos bondosos, compassivos e amorosos de um homem... Yahshua. Ele mal podia acreditar no que estava acontecendo.

"Quero sim", falou a voz bondosa e determinada daquele cujas mãos seguravam seu rosto.

Rafael sentiu que o próprio Deus tinha estendido a mão através do vasto universo para amorosamente colocar suas mãos nele, trazendo cura no mais profundo do seu ser. Ele não conseguia impedir as lágrimas que brotavam e transbordavam dos seus olhos em torrentes de gratidão. Ele chorou, pois agora estava puro.

Alguns dos homens que estavam com Yahshua agruparam-se ao redor de Rafael e o ajudaram a ficar de pé. Eles não temiam mais se aproximar dele, mesmo que Rafael ainda cheirasse muito mal. Levaram-no para um rio próximo, enquanto a multidão permanecia para trás com Yahshua, falando excitadamente sobre tudo que tinha ouvido e visto naquele dia.

Lá embaixo, no rio, os homens entraram na água com Rafael e ajudaram-no a tomar um banho, limpando seus cabelos emaranhados. Contaram para ele tudo sobre o seu Mestre Yahshua e falaram sobre eles mesmos. Rafael batia e brincava na água como uma criança. Ria e chorava ao mesmo tempo. Ele nunca tinha sido tão amado.

Os homens deram a ele algumas roupas para vestir. Deram-lhe de sua própria comida para que Rafael comesse. Relembraram Rafael das instruções do Mestre, que ele não devia contar para ninguém o que tinha acontecido, mas que devia ir se mostrar ao sacerdote e apresentar a oferta requerida pela lei.

Rafael estava extremamente feliz, quase fora de si de tanta alegria. Gratidão fluía da sua boca por causa do grande milagre que tinha acontecido em sua vida. Ele agora era verdadeiramente o seu nome... RAFAEL... CURADO POR ELOHIM!!!

Venha conhecer nosso Mestre Yahshua, o único que realmente tem o poder de verdadeiramente curar!

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